sábado, 29 de junho de 2013

Um fiozinho de vida.... O que é um fiozinho de vida? O que é vida? A vida?

Já li em algum lugar que a vida é mais ou menos como aquele fiozinho de linha ou de lã que se solta da roupa de tricô e você vai puxando, puxando, pra tentar arrumar ou arrancar, ou vai enrolando, enrolando e quase como que sem querer desfia tudo... a vida por um fio.

Você desfia, e o tricô não tem mais cara de tricô. É um amontoado de linha... ou de lã... emaranhado.

Com a vida é igual... você vai puxando do futuro um dia depois do outro. Ilude-se de que está tudo sob controle... organizadissimamente organizado. Um dia se dá conta de que a vida não é tão quadradinha assim. Ela segue o rumo que quer, sem se importar com os nós que vão se formando... o emaranhado não é macio como a lã... o emaranhado é de fios de arame farpado.... com um toquezinho a mais de crueldade:  a intensidade da corrente elétrica provoca efeitos que vão até a mais cruel dor, sem matar.

E o fiozinho é tão frágil, mas não arrebenta.

Sentada na banheira senti-me abandonada por todos. O toque da campainha, lembrou-me de que eu estava viva, consequentemente tinha futuro... um arrepio percorreu meu corpo inteiro quando me dei conta da incerteza do meu futuro.

O frio cortante da realidade doía... liguei o chuveiro novamente.

Meu marido me avisou que seus pais haviam chegado...

Não tinha escolha, como uma marionete manipulada pelas mãos da vida... coloquei um roupão... e fui levada para a sala.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Liguei o chuveiro... abri a torneira para encher a banheira e entrei.... de roupa e tudo. A água quente... quente a ponto de não ser suportada era como agulhas incandescentes em todo o meu corpo.

Fui tirando a roupa... uma eternidade entre cada peça....

Peguei uma esponja e não... não pelo lado macio esfreguei em todo o meu corpo... queria dor... mais dor e mais dor.

Enfraquecida pela dor, arfando de dor... aumentei o quente da água... como desejei evaporar junto com o vapor que se espalhava pelo banheiro... ou desaparecer pelo ralo junto com a água que me banhava.... queria queimar e virar cinzas. Mergulhei na banheira... melhor morrer.

'És pó e ao pó hás de voltar.' Sim, sei que esta frase está escrita em algum lugar em um livro chamado Bíblia... queria voltar a ser pó, instantaneamente. Melhor: nunca queria ter deixado de ser pó informe.

A lembrança de ser obrigada a sobreviver veio como um soco no estômago... desisti do autoafogamento, diminui o calor da água, joguei a esponja longe...

e me agarrei num fiozinho de vida.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Como é difícil olhar nos olhos das pessoas... às vezes. Dizem que os olhos são as janelas da alma - um clichê, eu sei...

Não encarei meu marido naquele dia... e não me lembro de quando consegui olhar nos olhos dele de novo.

Não queria ver o que estava na alma dele... mas, acima de tudo, não queria que ele visse o que se passava na minha alma.

Dor? Você já sentiu dor... que eu sei. Todo mundo sente... então multiplique por centenas de vezes a sua pior dor... você vai encontrar o tamanho da minha dor.

Incapacidade... eu era a responsável por um garotinho e eu simplesmente o perdi... como se perde uma carteira, um livro, um documento. Eu não poderia ter perdido meu filho... não poderia e fim.

Eu sempre achava que mãe era onipotente quando se tratava de filhos... eu achava...

Eu me deixei ficar no sofá enquanto meu marido telefonava para seus pais - primeiro - e depois para os meus... Ouvia o som da sua voz, mas as palavras não tinham sentido nenhum para mim... eram zunidos...

'Eles estão vindo para cá', ele me falou... 'só pedi a eles que viessem para nossa casa, não falei o que aconteceu'.

Eu olhei horrorizada para ele... quem falaria? como falaria? o que eles vinham imaginando no caminho que tivesse acontecido para serem chamados à nossa casa?

Meu Deus! Tem de haver um Deus que vai colocar meu filho de volta no exato lugar onde ele deve estar... o lugar de onde ele nunca deveria ter saído.

Levantei-me e fui ao banheiro... e vomitei... e vomitei... e vomitei...

Saiu tudo de dentro de mim. Agora eu era uma casca oca ambulante... e assim permaneceria até encontrar meu filho - decisão tomada.

domingo, 9 de junho de 2013

Éramos três há poucas horas saindo por aquela porta.... Felizes, iríamos ter alguns dias inteirinhos só pra nós.

Agora somos dois.... com dias inteirinhos só pra nós

Meu marido abriu a porta, colocou a bagagem no chão da sala... e voltou para onde eu havia ficado. Gentilmente pegou minha mão e de mansinho me levou pra dentro de casa.

Acho que levamos uma eternidade do portão de casa até à sala. Nenhum dos dois olhou na direção do quartinho de Marquinho.

Meu marido me fez sentar no sofá, tirou meus sapatos... e eu me deixe ficar aí. O olhar perdido no nada...

No nada, não... criei na minha mente um enorme paredão de água e me coloquei ali me equilibrando nos meus próprios pés. Só saio do tubo pra abraçar meu filho... ou afogada pela água. foi

Meu marido foi ao banheiro... um pouquinho depois trouxe um copo de suco e um relaxante muscular. Os olhos dele estavam diferentes.... ele chorou, eu podia jurar que ele havia chorado.

Um relaxante muscular - me deu vontade de rir - nem um lote inteiro de relaxante me faria relaxar... mas eu tomei... e, interessante, pensei... apesar de tudo, senti vontade de rir.

Claro... me odiei por isso.

'Temos de avisar nossos pais', falou Marco Aurélio...

Sim, sim, pensei eu, ligue para eles e diga que perdemos nosso filho... só pensei.

Apenas fiz que sim com a cabeça, sem olhar para ele.

sábado, 8 de junho de 2013

Inércia - das leis de Newton a que tomou conta de mim no momento em que meu marido me empurrou em direção ao táxi foi uma das mais fáceis: a da inércia. Se meu marido continuasse me empurrando indefinidamente eu seguiria empurrada indefinidamente.

Quando chegamos em frente à nossa casa, e o táxi parou, meu marido teve de me arrancar à força de dentro do carro.

Você deve estar pensando que eu estava chorando desesperadamente. Não, não estava... a lei da inércia definitivamente havia tomado conta de mim. Eu havia fechado minha boca, minha cabeça, meu coração.... e não ia fazer nenhum movimento contrário.

Uma força externa era necessária para que eu me movesse. Fui puxada para fora do carro, empurrada na direção do portão de nossa casinha, empurrada porta a dentro. Fiquei de pé parada... não via nada, não pensava em nada... não sentia nada...

Congelei... se o meu filho não está aqui comigo, eu não quero viver. Não, não é o que você está pensando... não que eu quero morrer... não é isso. Simplesmente não quero viver.

Vou continuar respirando, respirando, encostada na vida.... encostada, ouviu bem!?

Tudo o que acontecer daqui pra frente vou empilhar em uma estante em minha cabeça e deixar lá... criar teia de aranha, encher de pó... vou manter uma sensação de que não estou andando e de que o tempo não está sendo deixado pra trás.

Dor? Não, não sinto dor.... se eu sentisse seria uma dor de matar... e eu não posso morrer. Se meu filho voltar amanhã, ele tem de me encontrar aqui... e então eu vou esperar.

Inércia..... Apertei pause....

domingo, 2 de junho de 2013

Acho que às vezes Deus abandona suas criaturas. Como Criador que Ele é, não nos deveria deixar sós nunca.

Claro, tínhamos de aceitar: nosso filho havia sumido. Alguém o tinha levado em segundos que desviamos nosso olhar dele. E agora um tinha de olhar no olho do outro, com todo esse peso.

Desviamos o olhar o quanto pudemos, olhávamos pra qualquer direção que não fosse os olhos um do outro. Mas, isso não poderia continuar pra sempre.

Eu continuava correndo para todos os cantos, mesmo sabendo que Marquinho já não estava mais lá. O que é a esperança!? Parece que enquanto não se perde a esperança o mal não aconteceu... como se tivéssemos a capacidade de mudar a situação.

Meu marido calmamente veio em minha direção, colocou suas mãos calmamente em meus ombros.... senti sua respiração próxima a mim. Juntei toda coragem que pude e enfrentei seus olhos...

enfrentei seus olhos.... não consigo descrever o que vi, nem o que deixei de ver.

Meu marido só falou: 'vamos... vamos para casa...' E eu me deixei arrastar.